Por Juvenal Savian Filho
Gilles Lipovetsky, 63, é um dos mais conhecidos pensadores atuais. Professor da Universidade de Grenoble, seu pensamento tem tido certa fecundidade não apenas no mundo acadêmico ou nos círculos filosóficos, mas também em outros universos, como o das artes, da educação, da psicologia, da política...e...do luxo. O interesse pelo mundo do luxo e da moda tem sido a prova de que inúmeros e inusitados elementos da experiência humana fornecem a Gilles Lipovetsky ocasião para aprofundar o sentido dessa experiência. Nesse trabalho de aprofundamento, não há desprezo pelo cotidiano nem pelo que parece fútil ou frívolo. Ao contrário, procurando redefinir o individualismo, Gilles Lipovetsky acrescenta novas misturas à palheta utilizada pelas filosofias atuais para pintar o indivíduo, como se pode perceber pela entrevista bem humorada que ele gentil e muito simpaticamente concedeu por telefone à CULT.
CULT - Como o senhor chegou ao universo do luxo como domínio de pesquisa filosófica? Poderia nos contar um pouco do trajeto de sua formação?
GILLES LIPOVETSKY - Tenho uma formação de filósofo; estudei filosofia na Sorbonne e depois ensinei muitos anos a filosofia mais tradicional, quer dizer, a história da filosofia. Autores como Platão, Kant, Hegel etc. Meus interesses voltavam-se, sobretudo, para a compreensão da história e da vida social, ligados, provavelmente, à minha formação marxista. Meus interesses se fixavam na observação do mundo e suas transformações. Distanciei-me, porém, do marxismo, sobretudo no que dizia respeito à noção de alienação, pois toda cultura de massas era vista como algo alienado. Interessei-me, então, pelas questões que geralmente são desprezadas pelos filósofos. Platão, por exemplo, não gosta da caverna. Para ele, é necessário sair para contemplar a beleza das idéias eternas, inteligíveis. Ao contrário, eu me interesso mais pela caverna; pretendo iluminá-la, sem precisar sair dela. Foi assim que me interessei pelos objetos mais desprezíveis para a maioria dos filósofos, como a publicidade, o lazer, o consumo, a moda, a maquiagem. O luxo, então, foi uma continuidade de tudo isso. Mas não falo apenas segundo um interesse pessoal, porque a moda ou o luxo não me interessam senão ao espírito; parece-me que tudo isso exprime muitas coisas de nossa época, da cultura, da psicologia e da natureza de nossa sociedade.
CULT - Mas, ao mesmo tempo, o senhor não ficou desgostoso com esse universo...
G.L. - Bem... Desgostoso não...
CULT - É que o senhor vinha de uma formação marxista, e muitos marxistas são radicais com respeito à condenação desse gênero de interesse...
G.L. - Eles têm um reflexo moral inteiramente justo, porque é verdade que há algo de escandaloso no luxo. Eu li, por exemplo, recentemente, que está retornando, na moda masculina, a utilização da pele de crocodilo. Em algumas marcas, uma jaqueta masculina chega a custar 80 mil dólares. Quando vemos algo assim, é difícil - como você diz - não ficar desgostoso. Porém, o que me interessa mais é o luxo acessível, não um luxo Rolls-Royce...Quis, de início, saber por que a indústria do luxo, no momento da globalização, mudou seus rumos. Hoje, mais da metade dos europeus compra ao menos uma marca de luxo por ano; tem-se tornado um fenômeno democrático. E não se trata de luxo que escandaliza. Comprar um vidro de perfume, um batom, uma bolsa de mil ou 2 mil dólares não é algo escandaloso. Talvez seja ridículo, mas não escandaloso. Esse é o luxo que me interessa, assim como também tenho interesse pelas técnicas de marketing, os novos modelos de lojas, pois isso toca a todos nós; trata-se de um fenômeno estético de nosso mundo. Se vemos as boutiques, nas cidades, não podemos negar que são belas. Isso é diferente de uma Daslu, por exemplo. Daslu é algo mais escandaloso...Pode-se chegar lá de helicóptero...Há favelas em volta...É chocante. Daslu é quase uma provocação. Mas, nas cidades, quando as marcas de luxo constroem grandes prédios, fazem belas lojas etc., as pessoas entram, vão ver, pois os espaços são abertos a todo mundo. Trata-se de um luxo acessível, relativamente democrático. O outro luxo, voltado para milionários, não me interessa. Esse é um universo que eu não conheço. Numa palavra, o que me interessa é o fenômeno da democratização do luxo.
CULT - Mas seria desejável tornar o luxo mais democrático? O que o luxo diz sobre a natureza humana?
G.L. - Já Shakespeare notava que, se acabarmos com os objetos de luxo, não teremos nada além de animalidade. O que o luxo diz é que o homem não se contenta apenas com a satisfação de suas necessidades naturais. Há, acima de tudo, uma busca de excesso, de ultrapassamento da simples naturalidade. Além disso, o luxo não é simplesmente uma demonstração de riqueza. Pode o ser, mas esse não parece o seu sentido. Há uma busca de beleza no luxo; uma busca de sensualidade. Há um gosto por tudo o que é refinado. Isso exprime, ao mesmo tempo, a competição entre os homens - é por isso que se trata de algo universal, pois os homens, desde sempre, rivalizaram por riquezas. Haveria, ainda, uma questão muito delicada: a arte faz parte do luxo ou não? Penso que sim. Costumamos deixar isso de lado, porque a arte tem uma dimensão espiritual, com referências ao sagrado, à Beleza, mas, se consideramos o preço de uma obra de arte, vemos que estamos muito próximos de um objeto de luxo. Essa é a razão pela qual as pessoas mais ricas, hoje, estão se tornando colecionadoras de arte contemporânea. Creio que o luxo testemunha o fato de o homem, como dizia Bataille, ser negatividade: ele não se satisfaz com o que tem, mas quer sempre mais.
CULT - Mas um objeto de luxo é necessariamente belo? Um artista não pode desejar o feio?
G.L. - Se adotarmos um olhar antropológico sobre o luxo, veremos que ele não esteve sempre associado a coisas belas. Em algumas sociedades, alguns animais tinham valor especial, como os cães para os esquimós. Isso aparece como luxo, mas não se trata necessariamente de beleza. É verdade que, a partir de um certo momento, o luxo e a beleza foram ligados, mas hoje ainda há produtos de luxo que não são necessariamente belos. Por exemplo, quando viajamos em primeira classe de avião: a decoração é a mesma que a da segunda classe ou da classe econômica. O que faz, então, o produto de luxo não é necessariamente a beleza, mas o bem-estar. Para dar uma palavrinha sobre a Beleza, eu diria que, atualmente, ela se "democratizou": a maior parte das pessoas vê mais coisas belas hoje em dia (na televisão, nas revistas, na publicidade etc.); nós consumimos beleza non stop. Vemos a beleza por todos os lados; certos produtos são acessíveis quase a todo mundo, como, por exemplo, os cosméticos. Talvez não as grandes marcas, mas já faz quase um século que os cosméticos se tornaram acessíveis a praticamente todas as pessoas das sociedades desenvolvidas. Nesse contexto, há novos mercados de luxo à procura de algo que está além da simples beleza. Isso remete muito mais à sensação do que à beleza...
Juvenal Savian Filho é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP/EPM - Campus de Guarulhos
quinta-feira, 24 de janeiro de 2008
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